outubro 24, 2007

ENTREVISTA. Geneton Moraes Neto por Felipe Cruz.
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p o l í t i c a
"UMA VEZ SENTI O BAFO DO JOSÉ SARAMAGO"
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No seu livro "Dossiê Brasília: Os segredos dos Presidentes" você explora uma área até então desconhecida das suas reportagens: a política. Isso facilitou ou dificultou na hora de entrevistar os ex-presidentes? Você deixou de fora algum trecho de uma dessas entrevistas?
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G - A política não me era totalmente estranha porque trabalhei na sucursal do Estado de São Paulo no Recife entre 75 e 80, e também cobria política. E peguei uma época muito rica lá, que foi a volta dos exilados. Me lembro de Miguel Arraes voltando do exílio, num domingo de manhã chuvoso, as pessoas invadindo a pista de pouso e ele acenando. Um momento bonito. Lembro de ter viajado com Ulysses Guimarães às pressas no dia em que mataram o operário Manoel Fiel Filho em São Paulo. Foi no início de 76, logo depois da morte do Vladimir Herzog. Um momento gravíssimo do governo Geisel que acabou provocando a demissão do comandante do Segundo Exército. Foi a segunda morte, e o Geisel resolveu intervir. Minha função era ouvir o Ulysses Guimarães sobre isso. Casualmente, ele estava de passagem pelo Recife e iria embarcar para Aracaju. Embarquei para Aracaju junto com ele, que na época era o presidente do MDB e líder da oposição. Mostrei um telex para ele, com a notícia. Ele tomou um susto e falou: "Isso é grave. Deixa isso lá no saguão do aeroporto de Recife. Assim que subirmos no avião a gente vê". No avião, fiquei perto dele, esperando a hora de tentar ouvi-lo. Ele pegou o jornal Estado de SP na página de editoriais e, um minuto depois, estava dormindo, segurando o jornal ... (risos). Já escrevi, brincando, que a partir desse dia fiquei na dúvida sobre a função dos editoriais. Serão soporíferos? (risos) Quando ele acordou, notei que estava fugindo um pouco de falar sobre o assunto, porque era realmente grave, naquele momento, alguém falar uma palavra fora de contexto. Poderia-se inclusive ser cassado, como houve casos. Perguntei: "O senhor quer falar?". Ele disse: "Não, primeiro vamos descer." Descemos em Aracaju e ele foi recebido com banda de música no aeroporto. Ele desceu acenando para todo mundo como se fosse quase um candidato à presidência da República. Mas ele estava evitando falar sobre aquele assunto. Durante uma entrevista coletiva na assembléia de Aracaju, ninguém tocou no assunto. Quando perguntaram se alguém tinha mais alguma pergunta, levantei o dedo e perguntei a ele o que o MDB tinha a dizer sobre aquilo. Ele respondeu, meio "pisando em ovos", que era um momento grave e que o MDB iria se pronunciar. Quando ele saiu, eu estava na porta e ele foi cumprimentando um por um. Apertou minha mão e falou baixinho no meu ouvido: "Você soltou o seu petardo, não foi?". De madrugada, ele recebeu os repórteres no hotel e fez uma declaração mais ou menos formal sobre aquela crise. Disse que, se houvesse um agravamento na situação, admitiria como recurso a utilização de "soluções de força", o que poderia ocasionar um conflito no Brasil. Pela manhã, um dos repórteres da comitiva foi acordado por um funcionário do hotel que disse: "O Dr. Ulysses quer falar com um de vocês". Ulysses pediu para que não fosse utilizada a expressão "soluções de força". Nunca mais esqueci essa frase.
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"Soluções de força" já é uma expressão branda, digamos assim, e ele já achava que poderia complicar...
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G - Sim, porque teve a cassação de Alencar Furtado e de alguns nomes do MDB que haviam denunciado as violências do governo militar. O Geisel não brincava em serviço: cassava. E naquele momento Ulysses Guimarães estava evitando uma expressão que pudesse criar uma crise. Nesse período também tive a chance de ouvir Miguel Arraes, Teotônio Vilela, Paulo Brossard (jurista que depois virou ministro da Justiça) e Lula quando era metalúrgico. Cobri a primeira visita de Lula, já famoso, de volta à Pernambuco, quando já tinha sido capa da revista Isto é e estava começando a aparecer como o "fenômeno" metalúrgico. Ele foi ao Recife em 78, e me lembro de duas coisas: uma, do quanto ele dizia palavrão; outra, quando ele foi visitar Dom Helder Câmara - foco de resistência ao governo militar no Recife. Lembro que Dom Helder morava em uma casa minúscula que tinha um poster na parede com a frase de Martin Luther King - "eu tenho um sonho..." - e foi com sua mulher e um filho pequeno, Sandro. Lula falou para Dom Helder: "Esse menino aí é meu filho. O nome dele é Sandro. Tem nome de cabeleireiro, mas é macho." Dom Helder riu da cena. Lembro também de uma declaração engraçada que ele deu. Perguntei: "O que o senhor vai fazer depois que sair da presidência do sindicato?". Ele disse: "Quando acabar esse meu mandato eu quero voltar à vida doméstica, dar mais atenção à minha mulher e meus filhos. O que eu sei é que não tenho vocação pra política." Engraçado isso, né? Virou presidente da República. Obviamente deve ter mudado de opinião... Republiquei os trechos mais importantes desta entrevista no livro Dossiê Brasília. Acho que foi uma boa coisa o fato de ter entrevistado os presidentes sem estar exercendo jornalismo político. É aquilo que eu disse antes: é sempre saudável você ver as coisas pela primeira vez.
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Aquele estranhamento...
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G - É. Eu acho que um repórter de Brasília que já deve ter entrevistado trezentas vezes o Fernando Henrique ou o Collor provavelmente não teria curiosidade de fazer algumas perguntas. Já me perguntaram as coisas mais loucas. Certa vez, numa bienal de livros em Recife, alguém me perguntou: "Como é o cheiro dos presidentes?". Sinceramente, não me lembro de nenhum deles cheirar mal.
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Ou o bafo, né? (risos)
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G - Olha, uma vez senti o bafo do José Saramago. Eu até botei no blog: "Confissão inconfessável: Prêmio Nobel estava com mau hálito" (risos). Mas sobre o personagem que mais me marcou, entre os presidentes, acho que foi o Collor. Jornalisticamente, talvez seja o personagem mais rico dos quatro. Primeiro, pelo lado trágico da história: um cara com quarenta anos de idade chegar a ser presidente da república - que não é uma republiqueta, apesar da gente ter nosso complexo de inferioridade - e, literalmente, jogar pela janela a chance de entrar para a história, como primeiro presidente eleito depois daquele período. Isso eu achei inacreditável. Ele, descrevendo a cena do impeachment, foi algo que me impressionou muito.
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Ele no quarto...
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G - No gabinete do presidente. Eu imaginei que na hora do impeachment ele devia estar cercado de assessores, com a TV ligada e contando os votos. E ele falou que ficou sozinho, no gabinete, sem ver nem ouvir nada, apenas o rumor que vinha da rua a cada voto. Isso é uma atitude bem Collor mesmo, né? Quando o voto final foi comemorado como um gol - ele conta que pensou: "Está tudo perdido". Chamou o ajudante de ordens e foi embora. Então você vê o presidente descrevendo a própria desgraça! Já o caso do Sarney mostra a diferença entre as personalidades. O Sarney tinha um certo deslumbramento - sem ser esta palavra -, com o exercício do poder. Você imagina: um vice-presidente que entrou para compor a chapa do Tancredo Neves, de repente, por uma conspiração do destino, assume a presidência da República num momento grave do Brasil. E dois meses depois ele está passeando com Gorbachev pelos jardins do Kremlin, discutindo o futuro da humanidade.
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De uma hora para outra ele passou a circular entre os poderosos...
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G - Ele se sentia orgulhoso. "Pô, estava passeando pelo Kremlin com Gorbachev e ele virou pra mim e disse: 'Não entendo esse Ronald Reagan. Esse cara fica me ligando e querendo me dar lição de como governar'." Outra cena engraçada, que também desmistifica um pouco o poder, é o Sarney dizendo que teve uma audiência com Ronald Reagan na Casa Branca. Estava lá o staff, o secretário de Estado e todo mundo na mesa. Quando a reunião estava no final, Sarney virou para o presidente Reagan e disse: "Presidente, o senhor poderia me dizer, como presidente dos EUA, país mais importante do mundo, o que vai acontecer com a humanidade nestes próximos anos?". Reagan riu, virou para o assessor dele e falou: "Conta pra ele aí". Sarney ficou meio chocado, pois esperava uma declaração grandiosa. Sarney tem estas histórias. Achei muito interessante quando ele contou sobre os bastidores. Por exemplo: ele foi quase intimado pelo Ministro do Exército a assumir a presidência na noite em que o Tancredo ficou doente e foi para o hospital. Sarney disse que não queria assumir porque isso iria contra a expectativa da opinião pública por um presidente da oposição. Quando ele disse que não queria assumir, Leônidas Pires Gonçalves - que viria a ser o Ministro do Exército e era amigo pessoal de Sarney - , ligou para ele de madrugada e disse: "Olha, a gente já está com problema demais aqui. O Tancredo está no hospital numa cama. Por favor, não crie mais problema. Você é o presidente da República. Boa noite, Presidente". E foi assim. Esse é o título do livro que Sarney disse que está escrevendo: "Boa noite, Presidente". Foi assim que ele soube que iria mesmo assumir, querendo ou não, a presidência da República.

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